sexta-feira, 29 de maio de 2009

"A beleza pura é insípida como uma gota de azul."

(achei como anotação solta, às margens de um texto que me caiu nas mãos hoje)

"Intermedio", Chantal Maillard

Entre una imagen tuya
y otra imagen de ti
el mundo queda detenido.
En suspenso.
Y mi vida
es ese pájaro pegado al cable
de alta tensión,después de la descarga.

Trecho de "Psicologia da composição", João Cabral de Melo Neto

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas.

(A árvore destila
a terra, gota a gota;
a terra completa
caiu, fruto!
Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras.)

Cultivar o deserto
como um pomar às avessas:

então, nada mais
destila; evapora;onde foi maçã
resta uma fome;
onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

"A Raiva"

Subtrai do ar o ar que ali havia,
retira do vento a ventania,
corta no mais determinado de seu vôo o vôo do pássaro,
chupa o sumo dos dias,
suga pelos bueiros o azul prateado da noite,
desautoriza o sol a nascer.

"El amor ha crecido"

" Hoy que estoy tan alegre, qué me dicen,
me miro el pecho y río, miro me
la estatura, el reloj, los pantalones,
tan alegre y me río, la camisa
me miro a carcajadas, vea usted"

(...)

"qué me pasa, me río y qué és no sé,
tengo un tumulto de violines vivos,
me nace un pájaro en boca "

(excertos de "El amor ha crecido, do poeta argentino Juan Gelman, de seu livro "Violín y otras cuestiones")

Mudarra

Fantasia (Fantasía que contrahaze el arpa en la manera de Ludovico), peça de Alonso Mudarra (1510-1580), compositor e violonista espanhol da Renascença. A descobri faz poucas semanas, já muito a ouvi desde então e meus ouvidos ainda a pedem. Aqui é interpretada por Per-Olov Kindgren.


http://www.youtube.com/watch?v=UM0yeBHjjZM&feature=related

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A vida secreta dos cravos de Gaza

Os cravos daqueles prados sabiam do vento, da terra macia, do pólen no bico dos pássaros. Seriam empunhados como armas sem balas, como florida esperança, mais ao longe, para lá daqueles montes, numa cidade chamada Lisboa.

Os cravos daqui não sabem do vento, da terra macia, do pólen no bico dos pássaros.
A semente germina no solo como uma afronta, como aquela rosa nascendo no asfalto.

Alguns adornam as lojas, impávidos. Secreto aceno de esperança. Outros serão presentes de namorados nas pontes sobre os canais holandeses...

domingo, 10 de maio de 2009

Balada estradeira

Vales de todos os tons e semitons verdejam meus sonhos.
O vento corre afinado pela copa das árvores. Suave, campea redemunhos de folhas e balanços de plantações.
Montanhas murmuram hinos e cânticos.
Me apaziguam de mim.

sábado, 9 de maio de 2009

Para Beatriz e Davi

Nas beiradas dos meus quase 23 anos, vocês vieram ao mundo. Eu, penso que já mulher feita, e o Caio, ainda entre menino e homem, nos deparamos com o assombro do novo. Daqueles assombros que, silenciosos, cintilam no cotidiano, feito vagalume e estrela cadente, e nos faz sentir mais vivos.
1 ano e 1 mês já se passou. Alguns dentes já despontaram, alguns passos já foram ensaiados. Muitos sons se encheram como balões coloridos saindo de suas bocas. A cada novo dia uma nova expressão facial, um trejeito diferente, um mungango que passou despercebido...
Davi passeia entre o sorriso farto, o muchôcho de contrariedade, as sobrancelhas levantadas de espanto e a cara de choro como num lance de prestidigitação. Fala com os olhos, olhos expressivos de menino travesso e desbravador de aventuras. Dentre elas catar formiguinhas e nos exibi-las como um tesouro recém-descoberto, assim como tudo de mais diminuto que ele possa achar pelo chão. Tem fascínio por portas e passagens. A irmã mais velha, quando tinha um pouco mais que sua idade, disse (ao deixar de morar em uma casa para ir morar em um apartamento e assim perdendo a passagem mágica da porta que dá para a rua) que não havia gostado da nova casa, pois ela não tinha porta.
Beatriz também fala com os olhos. Serena. Olhos grandes e negros, contemplativos. É solidária ao irmão, sorri largo quando ele sorri. Mas sabe se defender quando pressente a sua ameaça, quando o brinquedo que ela tem nas mãos vira o melhor brinquedo do mundo para o irmão, só pelo fato de estar em sua posse. Embora aconteça de ela às vezes, soberana, deixar o irmão levar o brinquedo consigo. Tem nome de princesa, imperatriz. De musa literária. É a minha irmã, um dia me terá como sua cúmplice e confidente!
Essa semana foi meu aniversário de 24 anos, 2 meses após vocês completaram 1 ano de vida. E aqui onde escrevo, na biblioteca da universidade, agradeço silenciosamente a chegada de vocês.

Brasília, 6 de março de 2009

terça-feira, 5 de maio de 2009

Objetos

Um guarda-chuva amarelo sobre a relva de um parque
Uma mala velha esquecida numa estação de trem.
Um cacho de balões vermelhos empunhados por um homem alto que, no dourado do entardecer, sobe em um ônibus quase vazio.
Um chapéu ao relento, onde um pássaro agora acabou de pousar.
Uma canoa prenhe de lodo e água na beira de um sossegado rio.
Alguns objetos guardam poesia própria,
alguns objetos guardam poesia tua.

"Dançando pra não dançar"

Desde pequena, não faz tantas primaveras assim, que sonho o sonho dos sonhadores por ofício e profissão. O de viver várias gotas de mar num oceano só. O de viver várias vidas (sem nenhum apelo espírita) numa mesma estreita passagem, numa mesma precária estradinha de piçarra que é a vida nossa, que até onde consigo saber é única. É o mesmo sonho de caixeiro-viajante. Ou de menino que quer ir embora de carona na última boléia do último caminhão do circo que se despede da cidade em que acabou de passar.
Essa minha gana se metamorfoseia em várias formas e tamanhos. Mas uma delas durou um tempinho mais comprido no universo da cachola, atravessou delírios de infância e adolescência. Era uma incerteza quase certa de que um dia seria bailarina de uma grande companhia de dança, daquelas que serpenteiam meio mundo em suas apresentações...juntaria assim a fome com a vontade de comer, dançando sobre os mapas, bailando nas latitudes e longitudes. De preferência uma trupe espanhola, sob a batuta de um Nacho Duato, Cesc Gelabert. Mas isso foi mais tarde, já rendida à dança contemporânea. Na infância, entre um tandue e um jeté, confabulava em tom de segredo com a Tallita. Susurrávamos entre um passo e outro que um dia nosso destino seria a fria e longínqua Rússia, primas-ballerinas do Kirov! Podia ser do Bolshoi também.
No sumo dos dias que já correram, levo sempre sempre a dança comigo, na minha memória e na do meu corpo, que é tudo uma coisa só. Levo-a no regaço, com carinho de filha e carinho de mãe. Levo-a às vezes mais, às vezes menos.
Sou bailarina de minha vida.

In natura arquitetura

Já vi pica-pau fazer ninho em poste. Talvez ele o tivesse confundido com árvore, o poste era o intruso ali. No meio do verde, em inverno no sertão. Na hora da sesta se ouvia o surdo picar do pássaro no poste, bem em frente ao alpendre da casa. Naqueles dias a gente adentrava o lago calmo do sono lentamente. A tristeza do pica-pau ao fundo, quase um acalanto.

Já ouvi dizer de casa de joão-de-barro se verticalizar, tomar o rumo do céu, como os prédios das grandes metrópoles. Tem até casa triplex, um arrojo só! Adaptação ao novo habitat urbano.

Só falta agora formiga contratar mestre-de-obras ou cupinzeiro se lançar num novo design arquitetônico...

Garatujas

Há lembranças que desenho com perene e delicado nanquim,suaves e vigorosas pinceladas de permanência.Outras são frágeis croquis descorados.Rascunhos que, ao avesso, não são ensaios do que virá,mas rabiscos de um já-foi.

Estética dominical

Céu de domingo
sobre a Esplanada dos Ministérios
Final de tarde.

O abandono das linhas,
do reflexo da luz nas vidraças,
da simetria das formas.
Tudo parece que sempre esteve ali como uma harmônica ode à solidão.

A beleza do lugar,
aos domingos,
final de tarde,
soergue-se.

Palavras Passantes

Palavras passistas,
seu passo equilibrista.

Passar cambaleante,
passeante.

Num fio de idéia,
num rastro de rompante.

Palavra dançante.